A GRAÇA DO BOM HUMOR

A GRAÇA DO BOM HUMOR

Pe. Ricardo Dias Neto (in memoriam)

Março de 1985.
(Da extinta revista Comunhão e Participação). 

“Dai-me, Senhor, a GRAÇA de entender uma boa anedota para que eu tenha um pouco de alegria na vida e mossa transmiti-la aos outros”. (São Tomás Morus).

Há santos e santos. Para mim, os santos “bem-humorados” sempre me atraíram. São Tomás Morus, particularmente, de quem tiramos essa pequena e grande frase de sua “Oração para pedir o bom humor”. Um outro é São Felipe Neri. Temos ainda muitos outros: Sant Teresa de Ávila, alguns aspectos da vida de Santa Catarina de Siena, São Tomás de Aquino, o próprio São Francisco de Assis. E, mais recentemente, João XXIII em alguns “fioretti” e o saudoso João Paulo I.

A graça e o humor caminham juntos. Há frases lapidares: “Um santo triste é um triste santo”; “Humor é a arte de tratar jocosamente as coisas sérias e seriamente as coisas jocosas” etc. Por isso, estou convencido de que o humor antecipa a salvação. Não é sem motivo que os santos são chamados de “Felizes” (Bem-aventurados). É difícil amar os santos carrancudos, sérios, esses ascetas macilentos e corroídos pelo jejum etc. Prefiro os santos que sabem sorrir.

Vejo o humor como a mais autêntica expressão do ser humano (“Ridendo castigat mores”, como quer o adágio latino) e, a partir da profundidade “é dimensionado para o infinito, para o ilimitado e o utópico” (Leonardo Boff).

Certa vez, quando conversava sobre a atuação da graça nos “agentes da opressão”, lembrei-me de que nos momentos mais tensos da política econômica, quer nacional, quer internacional, surgiram e ainda surgem, muitas piadas, anedotas e “charges” espirituosas. Um comportamento típico para suavizar a gravidade de um estado. Se a graça não está nesses agentes, conforme pudemos encaminhar a conclusão, pelo menos eles permitem (embora nem sempre aceitem) que tiremos “partido” e tornemos nossas vidas mais interessantes.

Quantas vezes uma situação desagradável, tensa e crítica pode se dissolver! Quase sempre aparece um “quebra-gelo”, alguém com uma “presença de espírito” tão forte que resolve situações quase desastrosas. Que é isso senão a graça atuando? Aconteceu durante uma tarde de reflexão com os pais das crianças da catequese de uma de nossas comunidades (alguns, infelizmente, alienados completamente do verdadeiro sentido de uma vida comunitária): após a explicação de um tema, formamos alguns grupos para debates sobre duas questões. Em plenário, cada grupo apresentou suas conclusões. O último relator, de um momento para o outro, passou a criticar o padre (que vem batalhando para transformar aquela comunidade em algo mais sensível à realidade, mais participativa e consciente) e, em determinado momento, comparou a Igreja a uma agência de automóveis, dizendo que os “fiéis” são os “compradores”. O padre deveria agir como um bom “vendedor”, “atraindo o cliente” e não “espantando” com tantas chamadas de atenção.

O clima ficou pesado, e por toda a parte ouviam-se farfalhar de tecidos e colares. Eu coordenava o plenário e, não sei como, saí com esta resposta: “Meu amigo, a Igreja não pretende vender nada a ninguém. Muito menos o Cristo. O último que o vendeu, arrependeu-se e devolveu o dinheiro”. Rimos muito e, em seguida, fizemos uma análise das respostas e o resultado foi bem mais animado, na perspectiva de futuro.

Com muita propriedade afirma Leonardo Boff: “O humor é sinal de transcendência do homem, que quase sempre pode estar para além de qualquer situação; ele não se deixa definir por nenhuma circunstância; em seu ser mais profundo e verdadeiro, é um livre. Por isso, pode sorrir e ter humor sobre os sistemas que o querem enquadrar, sobre os conceitos que visam defini-lo, sobre a violência que intenciona domesticá-lo” (1)

A atitude do homem diante das coisas é a mesma atitude de Deus diante do homem insuficiente perante si mesmo, mas que quer autossuficiente, como lemos nos Salmos: “Aquele que habita nos céus sorri”. E esse “sorri” é, na realidade, “Dá gargalhadas” ...

É uma maneira de relativizar as coisas terrenas, porque vive essencialmente para Deus (e com Deus, obviamente). Esse tipo de atitude é a graça de Deus que age no homem para o libertar. É, ainda, no dizer de Boff, “o gosto antecipatório da total libertação”.

Se a realidade do pecado ainda assombra o homem, o mesmo São Tomás Morus, na oração que citamos acima, diz: “...que eu não me espante diante do pecado, mas encontre sempre um meio de deixar tudo em ordem. Dai-me, Senhor, uma alma diáfana”. E a diafania da alma (é claro que aqui devemos ler o homem em sua integridade) se manifesta necessariamente no humor, o bom humor.

Percorrendo a Sagrada Escritura, vamos encontrar muitas passagens “humorísticas”. O povo de Israel, por sua vez, marcadamente sofrido e sofredor, encontrou no humor uma saída para seus males. A sátira e

_a ironia não estão ausentes da Bíblia (cf. os sarcasmos de Elias contra os falsos profetas de Baal em I Reis 18,27 e Isaías 44,12-17). Na literatura rabínica, o Talmud e o Midrash encerram parábolas e anedotas que já evidenciam características que podemos encontrar no humor judaico moderno. Alguns clássicos judaicos medievais são conhecidos pelo seu humor. O “Bet-Hamidrash” foi campo fértil de anedotas e ditos espirituosos. É o que eles chamam de “sichat chulin” (conversa leve). Encontramos um texto muito significativo na literatura rabínica: “Rabi Aba disse a Rabi Nachman Ben Itzak: Desde o dia da destruição do templo, o Santo-Bendito-Ele (“Hakadosh baruch Hu” assim é tratado Deus nos escritos talmúdicos) nunca mais sorriu”. (2)

Logicamente este assunto mereceria muitas considerações, talvez até mesmo muitas páginas. No entanto, como uma simples abordagem do assunto, enquanto delinear, parece suficiente.

A relação graça-humor-libertação é muito importante. Mesmo diante de uma situação obscura e imprevisível como a nossa, apesar do humor que tenta aliviar, embora jamais minimizar, o relacionamento com Deus, em Deus e de Deus, ainda traça sinais de esperança. Como disse no início, sobre os santos sorridentes, a virtude do humor é um caminho agradável para que o homem não se esqueça de seu papel diante da história. Sorrir é o melhor remédio. Não é a solução, mas o mundo será bem mais engraçado.

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1- BOFF, Leonardo “A Graça Libertadora no Mundo”, pág. 207, Editora Vozes, 1976

2- MONTEBLELLER, J.V. “Histórias do Povo da Bíblia”. Relatos do Talmud e do Midrash – Ed. Perspectiva 1967 – página 291

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NOTA DO ADMINISTRADOR DO BLOG:

Fui muito amigo do Padre Ricardo e sei que ele praticou, em vida, o que ele diz neste artigo. Certa vez estávamos, vários padres, numa semana de férias em Campos do Jordão, e ele chegou da rua e cumprimentou-nos. Todos estávamos interessados num programa de televisão e não respondemos ao seu boa noite. Ele não ficou zangado, não disse uma só palavra. Apenas ajoelhou-se diante do aparelho de televisão, como se estivesse o adorando. Isso foi suficiente para cairmos na risada e percebermos a nossa gafe. Deixamos de lado o que estávamos vendo e o cumprimentamos. Se você quiser ouvir algumas de suas músicas (ele era músico e compositor), clique aqui:


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